terça-feira, 6 de outubro de 2009

Curso de escrita criativa


O Marcelo Maluf é um escritor de mão cheia e ele também deu um curso aqui no centro cultural, de escrita criativa, que terminou na semana passada. O pessoal gostou tanto do curso que até mandou email pedindo para o curso continuar. Quem sabe daqui a um tempo a gente possa repetir a dose. Mas para provar que o pessoal se animou vamos postar algumas das muitas coisas que surgiram nessa oficina:



COMPLEMENTO
Clarinha adora enrolar os cabelos
(Soraia krunfly)

Clarinha adora enrolar os cabelos
Mas tem que ser
com o dedinho
As duas mechinhas da frente e
Sempre com muito carinho
Eis que o dedo indicador se aponta... pode ser o da direita...pode ser o da
esquerda...
E logo está nos cachinhos
Pobres cachinhos da frente

estão quase um nozinho
Enrolar pode ser para dentro
Enrolar pode ser
para fora
Clarinha não se importa... Que os cachinhos não caiam! Que os
dedinhos não se enrosquem!
Eles giram por toda hora
E como se não
bastasse
Clarinha ainda tomba a cabeça como se fosse charme
Sorri sem
enrolação
Mas os dedinhos lá estão!
Clarinha gira os olhinhos
Acompanhando os dedinhos
Mas os dedinhos
Param não!
...e que
reparem!
Importem-se ou não se importem
Reparem ou não reparem
É num
susto, num soluço.
Lá estão os dedinhos
Num carrossel cumpridinho
Gira gira que não para
Roda gigante que não desce
São os dedinhos da
Clara!
E então, e então?
Aonde vai parar tanta enrolação?
É uma
enrolação bem charmosa!
Divertida, como brincar de roda!
Não tem nem até
10, nem até três... Muito menos lá vou eu...
Acontece é de uma vez!


Olhava o vazio. No lugar da mão direita, um
vazio que acabava de acontecer quando a serra decepou o membro, estendido
próximo ao pé da mesa. Espantou-se com a falta de dor, a ausência de qualquer
reação. Novamente, olhou o vazio oculto e descobriu: mesmo a falta precisa de um
duplo. Mão esquerda passando pela serra, sentiu-se menos incompleto. O mesmo fez
com as pernas: primeiro a direita, seguida pela amputação da esquerda.
Olhando-se, percebeu que alguma coisa sobrava naquele novo conjunto.
Determinado, desmembrou o tórax, enquanto a cabeça questionava a utilidade das
orelhas.
Renato Dias
Setembro/2009
Um velho de ouro com um relógio de lutoUm velho de ouro com um relógio de luto entrou na igreja às nove horas e nove minutos do dia nove. Ao seu lado, uma jovem de ouro branco resplandecente.
Era o dia mais aguardado de toda minha existência. Meu vestido branco varrendo o corredor imenso, mamãe emocionada ao piano executando a famosa marcha nupcial e meu amado ao pé do altar. Tudo me deixava ardentemente feliz. Exceto ele.
Papai se arrastava pelo corredor da catedral, adiando cada passo, forçando tropeços, afundando as mãos em meu braço como se pudesse me impedir. Sussurrava em meus ouvidos seus pedidos de não que soavam num desespero crescente enquanto nos aproximávamos do altar.
A cada passo e a cada não, minha memória reconstituía partes da historia que resultava agora neste caminhar conflituoso.
Eu o conhecia desde criança. Filho da babá Jacarandá, o menino de madeira sempre me chamara a atenção. Fosse por sua pele cheirando a eucalipto ou por seu hálito de terra molhada, ou mesmo por seus cabelos de urucum, tinha o estranho poder de me dominar. Dominava meu olhar quando criança, minha fala quando adolescente e, alguns anos depois, havia invadido todos os meus sentidos.
Tendo percorrido metade do caminho, mamãe tocava agora Claire de Lune; meu amado me observava ansioso e papai, de súbito, deteve-se, as mãos ainda me prendendo.
Foi na tarde em que ao piano ele tocava Debussy e eu dançava encantada, que papai descobriu nossa paixão. Escondido, esperou que trocássemos um beijo para furioso quebrar o piano e olhar seu relógio assustador:
- É hora de desaparecer daqui cortiça amaldiçoada!
Quando veio de punhos fechados para cima de meu amado, atirei todo meu corpo de ouro maciço para defendê-lo.
- Uma moça de ouro puro e branco misturando-se a um homem de madeira? O que seus filhos serão? Uma mistura? Não se pode permitir!
Gritou assustando todos os presentes. Pronunciava a palavra mistura como se sentisse náuseas.
Quando comunicamos a decisão de nossa união a papai; sua única reação foi declarar que estaria de luto no exato momento em que entrasse comigo na igreja.
Ainda na metade do caminho, finalmente largou meu braço. Tirou o relógio gigante do pulso e, parando os ponteiros, entregou-me.
- Eis aí seu presente de casamento! O meu luto.
Ao virar as costas para partir, atirei com a maior força que pude aquele objeto dourado ao chão. Os pedaços espalharam-se pelo ar. E foram apenas os ponteiros que permaneceram intactos, voando como lâminas em uma velocidade incrível.
Continuei meu caminhar sozinha, porém ainda resplandecente. No altar encontrei-o com seu olhar fascinante e, no momento em que nos dávamos as mãos, os ponteiros derramavam o sangue de papai. A marcha fúnebre ecoava na catedral.
Luci Savassa
09/09/09
O confronto
Era um castelo de torres pontiagudas, situado no alto de uma colina, em meio a uma floresta densa e circunspecta. O vigia do castelo, que vivia numa casinha na árvore mais robusta, era um bruxinho carrancudo. Ele somente permitia a entrada de quem quer que fosse no castelo, mediante a apresentação de uma senha que mudava a cada dia.
O castelo era a moradia de um médico que atuara muito no meio holístico. Sua juventude fora um tanto conturbada. De fato, nos primeiros cem anos de sua vida, comia jaca sozinho, largava qualquer emprego e olhava todos no nariz. Quando conseguiu se estabilizar – e isso ocorreu por volta dos cento e trinta anos – começou a estudar muito, cultivou múltiplas relações, mas, por sua conduta excêntrica, acabou angariando mais inimigos do que amigos. Com o passar dos tempos, buscou refúgio na marginalidade e exilou-se nos corredores sombrios de seu castelo.
No entanto, em uma noite de tempestade, um velhinho – buscando abrigo junto à suntuosa porta do casarão – lembrou-se de que, quando mais jovem, ouvira falar remotamente de um médico que atuava naquelas paragens. Posto que o velhinho era um avô preocupado com a gripe do neto, ele resolveu tentar a sorte e descobrir o dono do castelo. Foi, então, imediatamente abordado pelo vigia, que lhe solicitou a senha. “_ Senha?”, perguntou o bondoso senhor. “_ Não sei!”. “_ Então, sua permanência nos arredores do castelo não é permitida!” O velhinho, que estava ensopado até a alma, lembrou-se, então, do netinho, que lhe pedira uma fatia de torta de chocolate, quando retornasse de sua empreitada. Solicitando a inspiração da fada dos desejos, disse ao vigia: “_ A torta era para ser de chocolate!” Surpreso com a resposta do viajante, que correspondia à senha daquele dia, o bruxinho ficou ainda mais carrancudo, pois teve de abrir a porta do casarão.
O velhinho, agradecendo a assistência da fadinha dos desejos, entrou na casa e viu-se transportado para uma sala com uma cúpula de vidro; parecia um laboratório de cientista e a presença de um homem com fisionomia monstruosa tornava a atmosfera ainda mais assustadora.
“_ O que veio procurar?”, indagou a fera.
“_ Vim pedir-lhe um remédio para a doença de meu neto”, respondeu o avô impressionado com aquilo que estava presenciando.
O monstro indicou-lhe um frasco de remédio e o velhinho, ao pegá-lo, logo sentiu o odor acre e lancinante daquela poção. “_ O doente deverá ingerir o medicamento durante o período compreendido entre duas luas cheias. Ao final da posologia, ele deverá ser trazido aqui para uma avaliação”. O avô concordou com a exigência e saiu logo depois.
A tempestade melhorara um pouco, mas a estrada de retorno estava completamente enlameada. O velhinho resolveu aguardar um pouco; sentou-se sob a copa de uma árvore frondosa e adormeceu. Acordou, quando o dia já estava claro. Tomou, então, o seu rumo: em direção da casa do netinho. Lá chegando, foi recepcionado com alegria. O remédio foi administrado no prazo estabelecido. Ao final do período, uma adversidade foi constatada: o netinho ficou peludo como um macaco. O avô aborrecido tentou disfarçar o seu embaraço e completo desapontamento. Brincava com o netinho, dizendo: “_ Oba, o macaco chegou!!” Entretanto, o netinho só chorava; o avô percebeu, então, que havia sido vítima da maldade da fera. Inconformado com aquela situação, o bondoso senhor foi procurar o pastor de sua igreja e contou-lhe o que ocorrera. O pastor ficou surpreso e atordoado. Conversou com seus superiores que o aconselharam a estruturar uma vigília.
Então, naquele mês, quando a lua ficou cheia novamente, o avô – acompanhado pelos pastores – levou o neto para o castelo, assegurando o cumprimento de sua parte no acordo. E tudo acabou na vigília com os trezentos e dezoito pastores convocados. A força mística obtida naquele confronto quebrou o feitiço da criança, mas não liberou a fera da maldição que lhe fora atribuída por uma cigana outrora injustiçada. E, por causa disso, a aberração médico/monstro nunca mais deixou de espalhar-se pelo imaginário daquele vilarejo que circundava o castelo imponente e indubitavelmente assustador.
(Paulo Sérgio Ramos da Costa – 26/08/2009)



Marta K





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